Talvez uma das coisas que mais me tira do sério seja achar pentelhos no sabonete.
Não sei se está relacionado com o fato de eu frequentar o chuveiro com alguma periodicidade, e por isso tenha mais tempo para catar incômodos, ou o que. Mas todas as vezes que vou tomar banho, dou de cara com três ou quatro pêlos nojentos grudados no sabonete.
Dentre os motivos existentes, “o último usuário não notou que os havia deixado ali” é o que me é mais confortável acreditar. “O último usuário estava pouco se fodendo para o próximo” é o mais provável, enquanto “o último usuário deixou-os de propósito para se vingar de algo que eu fiz” seria se eu estivesse afim de armar um barraco.
Alguém por favor me explique qual a dificuldade em tirar os seus próprios resquícios do sabonete que acabou de usar?
Sempre vai haver uma justificativa mais confortável para se acreditar.
Repasso, repasso e repasso a cena em minha mente. Nem sei porquê.
Acredito que no intuito de naturalmente ir distorcendo os fatos até que eles se tornem um pouco mais agradáveis de se pensar. Continuo repassando tudo de novo e de novo, achando erros, criando acertos.
Percebo que cansei quando meu cérebro arranja algo, dentro do contexto, muito supérfluo para se concentrar , como se aquilo representasse férias, umas férias neurológicas; como se desperdiçar neurônios tentando lembrar do que estava tatuado no braço daquela atendente fosse menos cansativo do que tentar tirar conclusões da situação toda. Tentar.
Não me satisfaço com conclusões que não me favoreçam. Não descanso enquanto não crio razões e subterfúgios para justificar tudo o que foi feito. E a conclusão tem de ser positiva.
Não há saldo devedor moral na minha conta. Nada de CERASA psicológica. Só lucros.
Penso que a verdade é dispensável.
Quando o fato é imutável e o que me resta é lidar com ele, não vejo razão para me torturar com sinceridades implícitas. Aceito o que quero.
Há pentelhos no meu sabonete! Há, e ponto final.
Minha vontade é de gritar até que venham os bombeiros tirá-los dali. Ou sair do banho, com o xampú na cabeça, criar uma máquina do tempo, invadir o banho do filho da puta e fazê-lo arrancar os próprios pentelhos à dentadas. Ou também guardar o sabonete debaixo do travesseiro até que a fada dos pentelhos venha e me faça rica.
Porém, o que faço é: fecho os olhos e coloco o sabonete na água corrente até que fique limpo.
Os pêlos se vão. E como surgiram já não me interessa.
"Ficou difícil. Tudo aquilo nada disso.
Sobrou meu velho vício de sonhar.
Pular de precipício em precipício, ossos do ofício.
Pagar pra ver o invisível e depois enxergar.
Que é uma pena, mas você não vale a pena."
(Não Vale a Pena - Maria Rita)
(Não Vale a Pena - Maria Rita)