Ué.
Acordei magra e de cabelos e olhos castanhos. E que quarto estranho esse, tão... colonial, diria quase bucólico. Será que eu bebi ontem à noite e adormeci na casa de alguém? Com os olhos apertados, saí à procura de alguma janela e achei. Senti minhas pupilas praticamente afundarem-se para dentro do crânio; entendido, era dia. Virei o rosto e logo notei que havia um espelho ao lado da cabeceira da cama. Fui aproximando-me, pé ante pé, até que a imagem à minha frente refletisse alguém que não era eu, mas acompanhava meus movimentos. E que espécie de chapéu vermelho cafona é este?
De súbito, alguém abre a porta e grita:
- Chapeuzinho vermelho, venha tomar café para levar esses doces para sua vovosinha!
Ora, vejam só, um sonho. Minha mente anda desocupada o suficiente à ponto de sonhar que EU haveria de ser a Chapeuzinho Vermelho em meu subconsciente.
Pois bem, se eu era Chapeuzinho Vermelho, aquela deveria ser minha mãe. Olhei para ela, que já havia saído porta afora batendo os tamancos, e notei que dona Neila não era. Corri atrás dela. Ah, faça-me o favor, Jéssica, Rita Lee não! Sim, em meus sonhos Rita Lee era minha mãe, e tirava os biscoitos do forno enquanto escrevia “Pagú” que dizia ser em minha homenagem.
Acredito que na história original, a mãe da Chapeuzinho não a deixava sair sozinha, porém, no meu sonho, ela não só deixava como mandava-me ir pelo atalho da floresta que andava lotado de cogumelos para fazer chá e dar um barato legal.
Quando dei por mim, já estava pela estrada afora, bem sozinha, levando aqueles doces para a vovozinha; que mora longe e o caminho é deserto, e eu já começava a ficar nervosa a respeito do restante da música.
Ao que me parece, meu cérebro estava levando o roteiro em questão a sério, que me leva a crer que o meu fim era próximo e envolvia afogamento em líquidos gástricos de lobos. Não me preocupei tanto com isso, afinal, sempre que me aproximo da morte em sonhos, chacoalho a perna e acordo.
Andava, colhia alguns cogumelinhos cor-de-rosa e cantava “Shimbalaiê” pela estrada. Foi quando dei de cara com um homem. Estranho. Alto, com cabelos longos até os ombros, barba cheia e vestia uma camiseta do SPC. Ah, claro, esta era a maneira que meu subconsciente resolvera representar o perigo e o risco que a vida traz consigo.
Saí desvairada, largando até os biscoitos e cogumelos pelo chão. Nem sei o porquê de eu correr tanto do pobre rapaz; é provável que eu – Chapeuzinho Vermelho – estivesse em dívida lá pelo bosque.
Antes que eu tivesse tempo suficiente para pensar em para onde correria, esbarrei em outro homem. Ah, o caçador! Bem a tempo, hem. Olhei para cima, no intuito de reconhecer-lhe a feição, e... oi? Rainier?
Ranier é o padrasto do Rafael, para quem não o conhece. A personificação de toda a masculinidade existente. Não há conhecimento que ele não domine, nem tampouco domínio que ele não conheça. Na casa do Rafael, ninguém toma Paracetamol porque o Rainier usa uma técnica chinesa avançadíssima, que só ele e o Ching-ling que a inventou conhecem, que alivia a dor de cabeça; antes mesmo de doer, obviamente. É provável que ele tenha cerca de 400 anos, graças às células-tronco que ele mesmo retirou do seu próprio cordão umbilical e se aplica em injeções regulares desde a infância, e hoje, luta pelo seu quinhão na patenteação das pesquisas.
Enfim, de alguma maneira, estava ele lá, no papel do caçador que salvará a minha vida das mãos do moço-cabeludo-do-SPC.
-Rainier! Me ajuda, esse cabeludo quer me cobrar!
-Cama aí, Jé – dizia ele – vou falar com ele.
Me acalmei. Deixei-o cuidar da situação. Estiquei os ouvidos e só consegui ouvir uns “pa pa pá”, “não sei o que” e “essa guria é duca, velho, devolve os biscoitos dela!”.
Eu estava até impressionada, meus sonhos na maior parte das vezes seguem um rumo totalmente sem sentido, enquanto este sonho já durava lá sua meia hora e tinha um certo nexo. Muito próprio de ser, mas tinha. Eu, inclusive, estava magra! Me deu vontade de sair desfilando pelo bosque de calcinha e sutiã. Comecei a curtir toda a excentricidade daquilo tudo.
Era um sonho, não era? Tudo é possível – e o mais legal é quando me dou conta disso antes de acordar.
Olhei para o cabeludo, assoprei e ele desapareceu, com direito a deixar rastros de purpurina e tudo. Olhei para aquele bosque, para aquele chapéu horrível, para aquela história tosca, e transformei tudo em Londres. Com tempo chuvoso, e muito dinheiro no meu bolso.
Levei um tapa. Acordei. Com meu corpo, meu olho e meu cabelo.
Meu corpo sentado sobre uma cadeira do teatro da “Chapeuzinho Vermelho” que eu havia ido assistir com a minha prima de dez anos de idade, meus olhos inchados e meu cabelo bagunçado pelo tapa que eu havia acabado de tomar dela, me chamando para ir embora.
Cair no sono em peças de teatro não é, provavelmente, a coisa mais educada a se fazer. Porém, em questões de entretenimento, a peça poderia até estar bem legal, mas nada vence um sonho onde começa com eu sendo magra e filha da Rita Lee, e termina em Londres.
Pensando bem, vou dormir de novo.
"Nem me crie mais problemas."
(Trajetória - Maria Rita)